terça-feira, 31 de janeiro de 2012

DOZE PESSOAS VÊEM O SÊCULO XX - Eric Hobsbawn - Era dos Extremos

O SÉCULO: VISTA AÉREA
Olhar panorâmico

DOZE PESSOAS VÊEM O SÊCULO XX

Isaiah Berlin (filósofo, Grã-Bretanha): "Vivi a maior parte do século XX, devo acrescentar que não sofri provações pessoais. Lembro-o apenas como o século mais terrível da história".

Júlio Caro Baroja (antropólogo, Espanha): "Há uma contradição patente entre a experiência de nossa própria vida - infância, juventude e velhice passadas tranqüilamente e sem maiores aventuras - e os fatos do século XX... os terríveis acontecimentos por que passou a humanidade".

Primo Levi (escritor, Itália): "Nós, que sobrevivemos aos Campos, não somos verdadeiras testemunhas. Esta é uma idéia incômoda que passei aos poucos a aceitar, ao ler o que outros sobreviventes escreveram - inclusive eu mesmo, quando releio meus textos após alguns anos. Nós, sobreviventes, somos uma minoria não só minúscula, como também anômala. Somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, jamais tocaram o fundo. Os que tocaram, e que viram a face das Górgonas, não voltaram, ou voltaram sem palavras".

René Dumontl (agrônomo, ecologista, França): "Vejo-o apenas como um século de massacres e guerras".

Rita Levi Momalcini (Prêmio Nobel, ciência, Itália): "Apesar de tudo, neste século houve revoluções para melhor [...] o surgimento do Quarto Estado e a emergência da mulher, após séculos de repressão".

William Golding (Prêmio Nobel, escritor, Grã-Bretanha): "Não posso deixar de pensar que este foi o século mais violento da história humana".

Ernst Gombrich (historiador da arte, Grã-Bretanha): "A principal carac-

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terística do século XX é a terrível multiplicação da população do mundo. É uma catástrofe, uma tragédia. Não sabemos o que fazer a respeito".

Yehudi Menuhin (músico, Grã-Bretanha): "Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais".

Severo Ochoa (Prêmio Nobel, ciência, Espanha): "O mais fundamental é o progresso da ciência, que tem sido realmente extraordinário [,.,] Eis o que caracteriza nosso século".

Raymond Firth (antropólogo, Grã-Bretanha): "Tecnologicamente, coloco o desenvolvimento da eletrônica entre os fatos mais significativos do século XX; em termos de idéias, destaco a passagem de uma visão relativamente racional e científica das coisas para outra não racional e menos científica".

Leo Valiani (historiador, Itália): "Nosso século demonstra que a vitória dos ideais de justiça e igualdade é sempre efêmera, mas também que, se conseguimos manter a liberdade, sempre é possível recomeçar [...] Não há por que desesperar, mesmo nas situações mais desesperadas".

Franco Venturini (historiador, Itália): "Os historiadores não têm como responder a essa pergunta. Para mim, o século XX é apenas o esforço sempre renovado de entendê-lo".

(Agosti & Borgese, 1992, pp. 42, 210, 154, 76, 4, 8, 204, 2, 62, 80, 140 e 160)

A Cultura da Música eletrônica

Folha de S. Paulo
São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009






Sem drama
Em trecho de livro inédito, o psicanalista Tales Ab'Saber analisa a cultura da música eletrônica, que dissolve as estruturas dramáticas da vida psíquica e social

TALES AB'SABER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há em Berlim uma casa que nunca fecha. Aquela noite que não termina jamais de fato pode começar a qualquer momento do dia, às 7h da manhã ou ainda às 10h. Lá todos os tempos se estendem, e noite e dia se transformam em outra coisa.
Naquela imensa boate que pretende expandir o seu plano de existência, seu tempo infinito, sobre a vida e a cidade, construída em uma antiga fábrica, uma antiga usina de energia nazista, todo tipo de figura da noite se encontra, em uma festa fantástica alucinada que desejaria não terminar jamais.
À luz da vida tecno, as ideias tradicionais de dia e de noite se revelam mais frágeis, bem mais insólitas do que a vida cotidiana sob o regime da produção nos leva a crer. Para alguns, o mundo do dia se tornará definitivamente vazio e apenas a noite excitada e veloz vai concentrar em si o valor do que é vivo.
Naquela boate, como em muitas outras -essa estrutura de diversão é industrial e global-, tudo se encerra apenas quando o efeito prolongado e sistemático da droga se encerra. Como uma pausa para respirar, às vezes tendo passado muitos dias entre uma jornada de diversão e sua suspensão momentânea. Para muitos, apenas pelo tempo mínimo da reposição das forças até a próxima jornada pela política imaginária da noite. Essa pausa mínima seria, em suma, a própria vida.
E, ainda, mais. Para outros tantos, o próprio efeito da droga sob a pulsação infinita da música eletrônica, experiência programática e enfeitiçada, não deveria se encerrar jamais: estes estariam destinados ao projeto de dissolução na pulsação sem eu da música tecno, seja a dissolução do espírito, em uma infantilização definitiva para os embates materiais da vida, seja a dissolução do corpo, ambos igualmente reais.
O bar Panorama de Berlim, apelidado pelos brasileiros que habitam a noite tecno mundial de Paranoia, representa o espírito de totalização da cultura que a música eletrônica busca ter em nosso tempo. Aberto para sempre, sonho eterno de Dioniso, são dimensões tradicionais do sujeito de uma era histórica, de tempo e de repouso, de lazer e de trabalho, que se fecham com ele, não necessariamente em uma superação para melhor, ideia ela mesma superada pelo transe festivo geral.

Vazio de energia
De fato, após uma noite de vida tecno é forte a experiência radical de vazio que se torna o espírito do dia. Toda a trama da vida se descontinua em uma nova ordem muito contemporânea de depressão, depressão da própria energia libidinal que aparece agora esvaziada, mal sustentando algum investimento no próprio eu. A energia foi imensamente gasta à noite. Foi devastada, tornando o dia vazio de objeto, porém vivo, vivo no vazio, muito bem articulado à busca pelo excedente absoluto de mais tarde, à noite.
Esse dado negativo que toma o dia certamente aponta para o valor esvaziado do que se tornou a vida, do qual se tenta fugir incessantemente, mas, na nova ordem do humano, se procura não pensar. Tal negatividade, que corta as ligações com as coisas do dia da produção na raiz, portaria talvez uma esperança utópica, sempre sinalizada pelos "clubbers", mas de natureza muito vazia, indeterminada, totalmente esotérica, transposta à ação da noite. Quem aspira ao infinito não sabe o que quer, um dia disse Schlegel [1772-1829] a respeito desse tipo de salto direto no sentido, que perde as mediações concretas.
Esta nova ordem da festa, onde a fantasia é o ser, funciona sobre outros padrões que os das antigas e tradicionais festividades humanas. A música eletrônica é a mais forte negação do universo primordial, até ontem, de política dramática própria ao eu da canção. Com ela o mundo pop chegou a sua autorrealização conceitual, espécie de vida pura da técnica, dispensando toda trama imaginária que não seja a sua pureza abstrata, fixada na mínima forma -um pouco ao modo de um retrato de Warhol-, na máxima pulsação para o aqui e o agora do corpo, como utopia indeterminada, ou como mundo realizado em sua música plenamente descarnada. Com ela a paixão pela alucinose consentida da noite busca a sua normalização na vida humana, e sua pacificação à luz do dia.

"Tecnocorpo"
A música eletrônica redefiniu assim um valor da experiência humana, daquilo que é estar diante da música. Seus novos campos do sentido são muito diferentes da experiência histórica da canção e sua reflexividade ainda referida ao eu. Eles são dois: o da estetização generalizada da vida, na expansão da política do imaginário e da moda e seu valor de mercado sobre todos os sujeitos, e o do impulso à ação, à atuação encenada, impulso à luta pela existência, que é o mero estado em que a vida está no mundo dado do capitalismo avançado.
Essa política mais radical do "tecnocorpo" em aqui e agora, longe do espírito que alucina, própria à nova indústria da diversão, onde impera a música eletrônica, coloca problemas complicados. Ela significa o fim da trama imaginária e suas profundidades dramáticas, em que o sujeito do inconsciente era lido em um certo teatro simbólico, a famosa triangularidade edípica, e sua razão narrativa, que põe o eu, o desejo e o outro, o tempo e o espaço em alguma perspectiva.
Neste novo mundo digital e pós-dramático, tudo é reduzido ao presente do fluxo e do prazer constante, autoerotismo social e tecnicamente produzido, talvez turbulento, mas contínuo, em que, em sua versão utópica, o outro é alucinado como mundo amoroso e indistinto, minha própria continuidade.
A técnica do tempo, nos "samplers", nas pistas iluminadas a laser e nas novas drogas sintéticas, encena uma forte experiência do todo sobre o sujeito, a nova tecnocultura, na qual as estruturas dramáticas de uma outra modernidade já estão ausentes. Essa cena, e sua política imaginária, se põe porque, de fato, tais estruturas estão falindo, anêmicas e desaparecendo na própria vida social.
Os sujeitos fragilizados e a crise real -de difícil apreensão, das estruturas de orientação moderna da vida, da política à educação, das nações à forma família- que o digam; ou melhor, que o dancem. Em parte esses espaços foram ocupados pela festa tecno sem fim, que busca a generalização, e a alucinose generalizada, do valor do corpo, o império fetichista da moda, a apresentação em ato na noite da imagem produzida do dia, para sobreviver ao sistema catastrófico do mercado.



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TALES A.M. AB'SABER , psicanalista, é autor de "O Sonhar Restaurado" (Ed. 34). Este texto é um trecho do ensaio inédito "A Música do Tempo Infinito".