segunda-feira, 25 de março de 2013

Belo Monte

Entrevista Maurício Tolmasquim: Belo Monte será um marco para o País http://www.provedor.nuca.ie.ufrj.br/eletrobras/estudos/pereira13.pdf PEREIRA, Reneé. “Entrevista Maurício Tolmasquim: Belo Monte será um marco para o País”. Estado de São Paulo. São Paulo, 04 de fevereiro de 2010. O presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, responsável pelos estudos de otimização da Hidrelétrica de Belo Monte, comemorou a liberação da licença ambiental prévia, que permitirá o leilão da usina em abril. Na avaliação dele, trata-se de um marco para o País, que terá a terceira maior hidrelétrica do mundo. Como o Sr. avalia a decisão do Ibama? Estou felicíssimo. É um dia muito importante para o Brasil. É um dia para se comemorar muito. Qual a importância de Belo Monte para o Brasil? A construção de Belo Monte será um marco para o País em todos os sentidos, seja ambiental ou de engenharia. Além disso, teremos a terceira maior hidrelétrica do mundo, que garantirá o desenvolvimento do Brasil. É uma usina que uma energia extremamente competitiva. Isso sem contar os efeitos ambientais, já que estamos falando de uma fonte renovável, que não emite dióxido de carbono. Belo Monte também vai levar inúmeros benefícios à região Norte e melhorar a vida da população local. Que benefícios são esses? Está prevista uma série de investimentos na infraestrutura local, como saneamento básico. Será criada também duas áreas de preservação na margem direita do Rio Xingu. Depois de Belo Monte, quais as usinas virão pela frente? Temos uma série que usinas que pretendemos leiloar a partir deste ano. Além de Belo Monte, a expectativa é realizar outros dois leilões de hidrelétricas até dezembro. Primeiro teremos algumas usinas menores, como Garibaldi (175 MW), Cachoeira (63 MW), Castelhano (64 MW), Estreito (56 MW), Uruçuí (134 MW) e Ribeiro Gonçalves (113 MW). Há ainda a expectativa de leiloar Teles Pires, de 1.820 MW. Mais para o futuro, temos São Luiz do Tapajós, de 5.918 MW. Além das hidrelétricas, o governo vai fazer novos leilões de energia eólica, cujo preço surpreendeu no ano passado? Sim. Vamos continuar explorando a energia eólica e também a energia movida a partir da biomassa, até porque elas complementam a energia hidrelétrica. Mas ainda estamos discutindo as datas. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- MATÉRIA DA REVISTA ÉPOCA ELIANE BRUM - 31/10/2011 http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/10/belo-monte-nosso-dinheiro-e-o-bigode-do-sarney.html ELIANE BRUM Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br @brumelianebrum ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia inShare2 Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo Monte vai “afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para você *. Talvez você descubra que a megaobra vai afetar diretamente o seu bolso. Se você é aquele tipo de leitor que acredita que os acontecimentos na Amazônia não lhe dizem respeito, esta entrevista é para você. Para que possa entender que o que acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele tipo de leitor que defende a construção do maior número de usinas hidrelétricas já porque acredita piamente que, se isso não acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à novela das oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido propaganda subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele tipo de leitor que compreende os impactos socioambientais de uma obra desse porte, mas gostaria de entender melhor o que está em jogo de fato e quais são as alternativas, esta entrevista também é para você. Como tenho escrito com frequência sobre a megausina hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões mais relevantes do país no momento, observo com atenção as manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes sociais como o Twitter. Anotei as principais dúvidas para incluí-las aqui e assim colaborar com o debate. Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a Célio Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Publicou vários livros, entre eles: “Energia no Brasil: Para quê? Para quem? – Crise e Alternativas para um País Sustentável” (Livraria da Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão Social e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar sobre Belo Monte para construir um painel que, infelizmente, foi ignorado pelo governo federal. Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo. Mas, especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na quarta-feira (26/10/2011), o julgamento da ação movida pelo Ministério Público Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a obra, como determina a Constituição, foi interrompida e adiada mais uma vez no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para explicar por que não suspendeu as obras de Belo Monte, o Brasil não compareceu, desrespeitando o organismo internacional e exibindo um comportamento mais usual em ditaduras. Em reportagem publicada em 20/10, o Estadãodenunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo Monte, o Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro. Na quinta-feira (27/10/2011), centenas de pessoas, entre indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu, pedindo a paralisação da construção da usina. Foram expulsos por ordem judicial. Enquanto o canteiro de obras era ocupado por uma população invisível para o governo de Dilma Rousseff, o cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma megaprodução cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte por cinco anos. O projeto é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler, aliás, foi um dos roteiristas do filme sobre a vida do ex-presidente. Entre as repercussões da megaprodução cinematográfica sobre a megaobra do PAC no Twitter, destacou-se uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney para a política”. Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”. Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas socioambientais obtidas na redemocratização do país. Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei que retira o poder do Ibama para multar crimes ambientais, como desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos do país desconectado com o que acontece na vida real para além do aquário brasiliense. No momento histórico em que recursos como água e biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação, o Brasil, um dos países mais beneficiados pela natureza no planeta, corre em marcha à ré. O cenário que você acabou de ler tem no centro – como obra simbólica e estratégica – Belo Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha conversa de quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP. - Por que o senhor, assim como outras pessoas que estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma “caixa preta”. Afinal, que caixa preta é essa? Célio Bermann – A política energética do nosso país é uma caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões. Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não permite, por exemplo, que o leitor da Época entenda o que é terawatts-hora. Mas seria interessante que a população toda tivesse conhecimento e pudesse, com informação, começar a definir junto com empresas e governo os rumos que são mais adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse processo. Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento, procurar as populações tradicionais, mostrar o que é uma usina hidrelétrica, por que alaga quando você interrompe o fluxo, o que é uma barragem, e como isso vai acabar transformando a vida da comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de informação, já que governo e empresas não o fazem. - Sim, mas por que o setor energético tem sido uma caixa preta por décadas? Bermann - A governabilidade foi encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de interesses que sempre estiveram no nosso país. É a mesma turma que continua na área energética. E isso é impressionante. A população não participa do processo de decisões. Não existem canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos dois mandatos de FHC participavam os dez ministros, mas havia um assento para um representante da academia e um da chamada sociedade civil. Eles sentavam, discutiam as diretrizes energéticas de uma forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos ovos, na prática não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse sentido de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo "democrático popular" do Lula, nos dois mandatos, e da Dilma, agora, é a negação de escutar outros interesses que não sejam aqueles que sempre estiveram junto ao poder. A própria Dilma, no início do governo Lula, tinha uma dificuldade muito grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e ouvir. Eu tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá, em Brasília. - E qual era o seu papel? Bermann – Era apagar fogo, este era o meu papel... - Mas, oficialmente... Bermann - O meu papel era tentar amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu fui trabalhar com a Dilma como assessor ambiental no Ministério de Minas e Energia. A ideia inicial era criar uma Secretaria de Meio Ambiente dentro do ministério. Era a época em que tínhamos a Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um ambiente extremamente propício para aparar arestas e ver se a coisa poderia caminhar de uma forma mais adequada. Achei, então, que a melhor forma de fazer isso não era criar um lugar dos ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as secretarias do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente interessante, porque me permitiu sair da academia e ter, na prática, a percepção de como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo. - E como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo? Bermann – É um horror. É uma lentidão. É um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu falo isso com todos os pontos nos “is”. No início do governo se buscava um entendimento entre os chamados "ministérios fins" e o meio ambiente. Transportes, por causa da construção de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da atividade mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que são intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de levar adiante a possibilidade do estabelecimento de pontos comuns. Fizemos, então, um acordo entre Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente em função da definição de "pontos comuns", de procurar verificar onde poderíamos estabelecer alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me lembro, o documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas ministras só foram assinar em 31 de março de 2004. - Por quê? Bermann – Boa pergunta. Por quê? Boas intenções... mas por quê? Eu realmente não consigo definir exatamente se era uma questão de veleidade... não sei. No final de 2003 a Marina começou a perceber a dificuldade de ela continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando a coisa acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda comum, um processo extremamente positivo de entender que existem usinas hidrelétricas que não devem ser construídas. Em 2003, a Dilma estava feliz porque tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico" CÉLIO BERMANN - Imagino que não era fácil ser assessor ambiental da Dilma Rousseff... Bermann - É, foi uma coisa meio... difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte... e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011). - O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota do Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte... Só para situar os leitores, em 1989, no último ano do governo Sarney, ele era diretor da Eletronorte e foi no rosto dele que a índia caiapó Tuíra encostou seu facão por causa da proposta de Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto histórica que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá... Depois de deixar a presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá, agora como diretor de Transmissão da Eletrobrás... Bermann – Pois então. Naquela época, em 2003, era ele o diretor da Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por ter conseguido afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um amálgama entre os interesses históricos do superfaturamento de obras, sempre falado, nunca evidenciado. Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte. - No momento em que o senhor encontrou a Dilma, logo na constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor conta que ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do Sarney do comando da área energética. O que aconteceu a partir daí? Bermann - A pergunta é: tirou mesmo? - E qual é a resposta? Bermann - Naquele momento, manter esse pessoal à distância era estratégico para reconstruir as relações e viabilizar algumas das diretrizes que tinham sido objeto da proposta de governo. O que aconteceu é que a vida dessa situação (de afastamento) foi extremamente curta devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir afastados. E eu suponho que a percepção do problema da governabilidade no governo Lula foi uma ação desses setores que tinham percebido que estavam longe da teta da vaca e que não podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer? PMDB era oposição. Vamos conversar... E aí se reacomodam as questões. Eu não digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso que está em jogo. Mas essa capilaridade do Sarney permite manter o usufruto do poder. Eu não sou psicólogo para entender o que o senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar para o governo, ou quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no governo Lula e agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou dizer de novo: não é possível a gente acreditar na capacidade gerencial de um governo que se submete a esse tipo de articulação política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de entender o que é quilowatt, quilowatt-hora. De ir a público sem saber a diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts-hora. - O senhor está falando do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão? Bermann- Edison Lobão. - E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo? Bermann - É a oportunidade de se fazer dinheiro e de se reconstituir as relações de poder. Essa obra tinha sido sepultada em 1989, por conta da mobilização da população indígena, e voltou à tona no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso de que era um novo projeto. “O valor de Belo Monte aumentou em mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público" CÉLIO BERMANN - A ameaça de retomar Belo Monte esteve presente também durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse, devido ao apoio massivo dos movimentos sociais da região à campanha de Lula. O senhor acha que o fato de Belo Monte ter saído do papel tem a ver com a denúncia do Mensalão, em 2005, e a recomposição das forças políticas para a eleição de 2006? Bermann - Não tenho a mínima ideia. Mas vamos falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um custo de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram violentamente. Antes de ir para o leilão, a usina foi avaliada em R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se definiu um custo fictício de geração de energia elétrica de R$ 78 o megawatt-hora. - Por que fictício? Bermann - Fictício porque esse custo não remunera o capital investido. É por isso que várias empresas caíram fora do empreendimento, sob o ponto de vista da geração da energia elétrica. Mas as grandes empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da apropriação da renda. Com o consórcio constituído com 50% entre Eletrobrás e Eletronorte, as empreiteiras voltaram para fazer a obra. A elas interessa a obra – e não ficar vendendo energia elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria público-privada que está dando certo. Em que termos? A obra hoje está oficialmente orçada em R$ 26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5 bilhões para R$ 26 bilhões... - Em cinco anos, o valor da obra avançou em mais de R$ 20 bilhões? Bermann – Oficialmente está hoje orçada em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por menos de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento. - Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja, do nosso bolso? Bermann – Oitenta por cento da grana para isso é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que envolve empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo. Um esquema de relações de poder que se estabelece nos níveis local, estadual e nacional – e isso numa obra cujos 11.200 megawatts de potência instalada só vão funcionar quatro meses por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não se dá porque está aumentando o preço da cebola, do tomate, do leite... É por causa da volúpia de tomar recursos públicos que será necessário fabricar dinheiro. O ritmo inflacionário vai se dar na medida em que obras como Belo Monte forem avançando e requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que se pague uma série de coisas e também que se remunere com superfaturamento. Com Belo Monte, ganham as empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos que permitem que essa articulação seja possível" CÉLIO BERMANN - Quem perde a gente já sabe. Agora, quem ganha, além das empreiteiras envolvidas na obra? Bermann - Há as pessoas que ganham pela obra - fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: "É obra minha!". É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado. - O senhor costuma usar a expressão “Síndrome do Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à luz de velas devido a um apagão energético. Acredita que essa “síndrome” é manipulada pelo governo federal e pelos grandes interesses empresariais para emprestar um caráter de legitimidade a megaobras como Belo Monte? Bermann – O que eu tenho chamado de "Síndrome do Blecaute" conduz à legitimação de empreendimentos absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como foi provado pelo conjunto de cientistas que se debruçaram sobre o tema (painel dos especialistas), é uma obra absolutamente indesejável sob o ponto de vista econômico, financeiro e técnico. Isso sem falar nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma ideia do caos e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na Amazônia que utilizam a "Síndrome do Blecaute" para se viabilizarem. O fato de hoje o aquecimento global dominar a mídia e o senso comum, assim como a própria academia, ajuda a mostrar a hidroeletricidade como uma grande maravilha, independentemente do lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que ela vai causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio primário, ferroligas e celulose. - As chamadas indústrias eletrointensivas... Bermann – Isso. Eu não estou defendendo que devemos fechar as indústrias eletrointensivas, que demandam uma enorme quantidade de energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos próximos 10 anos, que a produção de aço triplique nos próximos 10 anos, que a produção de celulose seja multiplicada por três nos próximos 10 anos. E é isso que está sendo previsto oficialmente. - O que poucos parecem perceber e menos ainda questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o Brasil está inserido no mercado internacional em pleno século XXI. O quanto o fato de nossa economia estar baseada na exportação de bens primários tem a ver com a necessidade de grandes hidrelétricas? Bermann – Desde a ditadura militar, passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até FHC, tem sido assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão ia ser reorientada. Porque o programa de governo em que eu me envolvi preconizava a necessidade dessa mudança. E o que aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de 2010, vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada vez mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens industriais primários, sem agregação de valor. E são justamente os bens primários que consomem muita energia e geram pouco emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada pelo consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: "Não, nós não vamos fazer isso". - E depois esses produtos retornam para o Brasil, via importação, com valor agregado... Bermann – É. Eu sempre chamo a atenção para o fato de que, do alumínio primário que o Brasil produz, 70% é exportado. E o alumínio consome muita energia. Para se pegar um barro vermelho, que é a bauxita, e transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um primeiro refino para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó branco tem como consequência ambiental uma borra chamada de “lama vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na Hungria, houve uma catástrofe em função do rompimento de uma barragem que continha essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e foi um horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e, claro, não se faz mais isso nos países centrais. Isso não está acontecendo agora no Brasil, está acontecendo desde os anos 70. “Com Lula – e agora com Dilma – ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado internacional" CÉLIO BERMANN - Houve acentuação desse processo no governo Lula e agora no de Dilma Rousseff? Bermann – O que acontece a partir de Lula é o que eu tenho chamado de "reprimarização da economia". Nós já tivemos uma época em que a economia dependia basicamente da produção de bens primários: café, açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois, tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50 houve a substituição das importações com a vinda da indústria pesada. Aquele período marca um processo acelerado de industrialização da economia brasileira em que se buscava um desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo internacional. Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma questão do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa questão pública, dar condições para que a população compreendesse e debatesse o que está em jogo, e isso pudesse servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo: "Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande presença no Brasil, é a principal produtora mundial de alumínio primário e alumínio industrializado, assim como a maior mineradora de bauxita e refinadora de alumina), vocês não vão continuar aumentando a produção aqui no Brasil. Procurem um outro lugar. A produção de energia elétrica gera um problema ambiental enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda da população”. Mas, infelizmente, isso não é feito. - Mas essa obstinação do governo Lula, e agora do governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de imagem aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações judiciais contra a obra movidas pelo Ministério Público Federal, fora as outras... Essa obstinação se dá apenas por causa do esquema de governabilidade, do esquema político para as eleições a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa? Bermann – Isso já não te parece plausível? Ou você acha que tem alguma coisa meio doentia, que precisa ser explicada? (risos) - Doentia, não sei. Mas eu gostaria de compreender melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista técnico. Bermann – Divulgaram que esta será a única usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP em que tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim (presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia). E ele veio com essa ladainha: “Vai ser a única...”. E eu disse a ele: “Com o perdão do poeta, o que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em cartório e assinado: Deus”. - O senhor não acredita que será a única usina do Xingu, então? Bermann – Me diga alguma coisa no nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma coisa aqui no nosso país que foi dito de uma forma e se manteve ao longo do tempo. VAI ser necessário construir outras usinas. No atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte característica: quando chove, quando tem água, quando desce a água dos tributários para o Xingu é muita água, é um volume enorme de água. Mas isso só acontece durante quatro meses por ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão estar operando. Em outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts, um décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse porte, se, na média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts? Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência instalada de 11.200 megawatts existir de fato. “O conceito do governo e das empresas não é o de população atingida, mas o de população afogada" CÉLIO BERMANN - O senhor está dizendo que o governo federal está mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir vencer as resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará mais três ou quatro? Bermann – Estou dizendo que, da forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica tão grande que é totalmente ilógico construí-la. - E essa afirmação, discutida hoje na Justiça, de que os povos indígenas não serão atingidos? Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida. - Agora, digamos que nós concordássemos que a obstinação de construir Belo Monte, ainda que atropelando a população e talvez a Constituição, se devesse à necessidade de energia elétrica. E digamos que Belo Monte fosse de fato um projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas hidrelétricas são as melhores opções para a geração de energia no Brasil de hoje? Quais são as alternativas a elas? Bermann – Não podemos olhar a questão da produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado, que é o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve hábitos culturais da população. E a população sempre entendeu que energia elétrica se resume a você apertar o botão e ter eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a “Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não estou dizendo para fechar as fábricas de alumínio, de aço e de celulose no Brasil. O que estou dizendo é o seguinte: parem de ampliar a produção. Parem, porque diversos países desenvolvidos já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão produzia, em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos produzindo quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia elétrica necessária para produzir alumínio tornou-se da ordem do absurdo. Então o governo japonês, as empresas japonesas produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de todas as usinas de produção de alumínio primário no Japão, exceto uma. Isso ainda nos anos 80. Hoje, o Japão produz apenas 30 mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil toneladas. Diante da necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio, o que o Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos priorizar a eficiência, o maior valor agregado. Nós não precisamos produzir aqui. Tem o Brasil, tem a Venezuela, tem a Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode transferir as plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega valor e exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né? Mas foi isso o que os japoneses fizeram. Eles mantiveram o crescimento econômico e reduziram a demanda por energia. Nós estamos caminhando no sentido inverso. Estamos aumentando o consumo de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e, numa atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a tonelada de alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se ter uma ideia, hoje falta esquadrias de alumínio no mercado interno, no mercado de construção brasileiro. O preço foi aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a oferta no mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil exporta o alumínio por US$ 1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada de esquadria importada é o dobro: cerca de US$ 3 mil a tonelada. - Para o senhor, a questão de fundo é outra... Bermann - Nós temos pouca capacidade de produzir alumínio com valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar essas fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de energia, e investir no processo de melhoria da matéria-prima para satisfazer inclusive a demanda interna hoje insatisfeita. Agora, vai perguntar isso para a ABAL (Associação Brasileira de Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma. Billiton, Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a cega subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o mercado financeiro. E é assim que o nosso país fica desesperado com a ideia de que vai faltar energia. Não é Programa Luz para Todos, mas Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos" CÉLIO BERMANN - Além de ser um modelo de desenvolvimento que prioriza a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também um modelo de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos. Enquanto tem, explora e lucra. Alguns poucos ganham. O custo socioambiental, agora e no futuro, será dividido por todos... Bermann – Isso. Os recursos naturais são limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em particular. Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita naquele pó branco do alumínio, que depois é fundido através de uma corrente elétrica, é uma quantidade de energia enorme, absurda. Essa possibilidade você não vai conseguir com energia solar, com energia eólica. São processos produtivos que exigem a manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A solar não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada de alumínio consome 15 a 16 mil kilowatts-hora. Para se ter uma ideia, na média, o consumidor brasileiro consome, por domicílio, 180 kilowatts-hora por mês, o que é baixo. Nós ainda estamos vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em termos energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser satisfeita com equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não construindo grandes usinas hidrelétricas para as empresas eletrointensivas, mas para conseguirmos equilibrar a qualidade de vida, que se deve fundamentalmente a uma herança histórica: a de sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. - Uma das piores distribuições de renda e uma das piores distribuições de eletricidade do mundo... Bermann – Eu chamo o programa de universalização de "Luz para quase todos". Não é para todos, é para quase todos. Desde que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas, para o sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas de produção descentralizada. A percepção ainda é, infelizmente, de pegar e estender a rede. Mas o custo de extensão da rede é muito alto. Principalmente, se você pegar e atravessar 15 quilômetros para atender duas, três casas. O lógico seria a adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça porque define inclusive uma outra relação social. Eu também chamo esse programa de “Conta de luz para todos”, porque de repente você fica refém de uma companhia e necessariamente paga conta de luz, quando você poderia criar uma situação de autonomia energética. - O senhor poderia explicar melhor quais são as alternativas para a população, já que todos nós crescemos dentro de uma lógica em que recebemos a conta da luz e pagamos a conta da luz; apertamos um botão na parede e a luz se faz. A realidade está exigindo que sejamos mais criativos e tenhamos mais largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão comum, especialmente o de regiões mais afastadas? Bermann – Depende muito do acesso à tecnologia existente no local ou na região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande do Sul uma experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor da queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma em vapor e esse vapor é injetado num tubo e gira uma turbina produzindo energia elétrica. Não tem nada de fantástico nisso, esse processo é conhecido há muito tempo, mas, puxa vida, eu estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão... Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado meio trágico da população em geral que é o comodismo: deixa que resolvam por mim. Então, quando você me pergunta sobre alternativas, depende do que a gente está falando. Existem alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias eletrointensivas. Como também é promissor ter esquemas de financiamento para que o pequeno empresário adquira um painel fotovoltaico (placa que transforma luz solar em energia elétrica) ou uma usina de geração eólica (transformação de vento em energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível para satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar ligado a uma grande linha de transmissão, de distribuição, puxando energia não sei de onde. - O que o senhor diria para a parcela da população brasileira que faz afirmações como estas: "Ah, se não construir Belo Monte não vai ter luz na minha casa", ou "Ah, esses ecochatos que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um avião para ir até o Xingu ou para a Europa fazer barulho". O que se diz para essas pessoas para que possam começar a compreender que a questão é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista? Bermann – Não é verdade que nós estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós estamos na iminência de um “apagão”. Nós temos energia suficiente. O que precisamos é priorizar a melhoria da qualidade de vida da população aumentando a disponibilidade de energia para a população. E isso se pode fazer com alternativas locais, mais próximas, não centralizadas, com a alteração dos hábitos de consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca de que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai trazer o progresso e o desenvolvimento do país. Isso é uma falácia. É claro que, se continuar desse jeito, se a previsão de aumento da produção das eletrointensivas se concretizar, vai faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem pressionar para que se abram canais de participação e de processo decisório para definir que país nós queremos. E há os que dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à luz de velas...”. Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso consumo racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir os hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que mais gente seja atendida, sem construir uma grande, uma enorme usina que vai trazer enormes problemas sociais, econômicos e ambientais. É importante a percepção de que, cada vez que você liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a luz da sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está chegando ali é resultado de um processo penoso de expulsão de pessoas, do afastamento de uma população da sua base material de vida. E isso é absolutamente condenável, principalmente se forem indígenas e populações tradicionais. Mas também diz respeito à nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do nosso modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela precisa já estar na cabeça das pessoas, porque não é só energia, é uma série de recursos naturais que a gente simplesmente não considera que estão sendo exauridos e comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças tenham essa discussão, incorporem essa discussão ao seu cotidiano. Eu também tenho uma dificuldade muito grande de chegar aqui na minha sala e não ligar logo o computador para ver emails, essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma grande satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção da satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela precisa ser percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não existe apenas para nos beneficiarmos com essas "comodidades" que a energia elétrica em particular nos fornece. Agora isso exige um esforço, e a gente vive num mundo em que esse esforço de perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por isso é difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se dar bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio, seja local ou nacional, para essas pessoas é muito fácil o convencimento que é praticado com relação a essas obras. Por mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o caráter absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a lógica econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo que é a utilização do dinheiro público para isso, para a referência à necessidade de se precisar, num futuro próximo, enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda para sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com que as pessoas compreendam a relação dessa situação com as grandes obras. E Belo Monte é mais um instrumento disso. Eu não sou catastrofista, não tenho a percepção maléfica da hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no nosso país nos últimos anos, é uma das bases da injustiça social e da degradação ambiental. Se não é pensando em você, você necessariamente vai precisar pensar nas gerações futuras. Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com a energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso perfil industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas com relação aos hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a relação que nos leva a uma cega exaustão de recursos. Em Brasília há um vírus letal que se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz com que a pessoa se ache o centro do universo" CÉLIO BERMANN - O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação com Belo Monte, em parte, por teimosia? Bermann - Ela é muito cabeça dura. - Às vezes eu acho que as questões subjetivas têm um peso maior do que a gente costuma dar. Não sei... Bermann - É, mas eu também não sei, não tenho nenhuma proximidade maior com o que ela está pensando agora. O que eu sei é que, no dia a dia, lá no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito reduzida de ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão postas. - Por que o senhor saiu do governo em 2004? Bermann - Porque venceu o contrato, e eu achei que não valia a pena continuar. Há conhecidos meus que foram na mesma época que eu e estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério, mas estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus letal, que é a "Brasilite". A "Brasilite" se compõe de um verme que entra no umbigo e toma a barriga da pessoa de forma a ela achar que é o centro do universo. A partir daí, mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o que ela passa a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus vivendi” brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso. - O senhor participou da elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo. Está desiludido? Bermann – Eu não aceito quando me definem como: "Ah, você também é daqueles que estão desiludidos, estão chateados...". Tem essa conotação, né? Em absoluto. Eu não estou desiludido, chateado, bronqueado. Eu estou indignado! - Quando o senhor se desfiliou do PT? Bermann – Ah, quando o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos. (Eliane Brum escreve às segundas-feiras)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Epitáfio para o Século XX

1. Aqui jaz um século onde houve duas ou três guerras mundiais e milhares de outras pequenas e igualmente bestiais. 2. Aqui jaz um século onde se acreditou que estar à esquerda ou à direita eram questões centrais. 3. Aqui jaz um século que quase se esvaiu na nuvem atômica. Salvaram-no o acaso e os pacifistas com sua homeopática atitude — nux-vômica. 4. Aqui jaz o século que um muro dividiu. Um século de concreto armado, canceroso, drogado, empestado, que enfim sobreviveu às bactérias que pariu. 5. Aqui jaz um século que se abismou com as estrelas nas telas e que o suicídio de supernovas contemplou. Um século filmado que o vento levou. 6.Aqui jaz um século semiótico e despótico, que se pensou dialético e foi patético e aidético. um século que decretou a morte de Deus, a morte da história, a morte do homem, em que se pisou na Lua e se morreu de fome. 7.Aqui jaz um século que opondo classe a classe quase se desclassificou. Século cheio de anátemas e antenas, sibérias e gestapos e ideológicas safenas; século tecnicolor que tudo transplantou e o branco, do negro, a custo aproximou. 8. Aqui jaz um século que se deitou no divã. Século narciso & esquizo, que não pôde computar seus neologismos. Século vanguardista, marxista, guerrilheiro, terrorista, freudiano, proustiano, joyciano, borges-kafkiano. Século de utopias e hippies que caberiam num chip. 9. Aqui jaz um século que se chamou moderno e olhando presunçoso o passsado e o futuro julgou-se eterno; século que de si fez tanto alarde e, no entanto, — já vai tarde. Affonso Romano de Sant'Anna

domingo, 7 de outubro de 2012

Escola troca formação de cidadãos pela capacitação de clientes, diz antropóloga

Escola troca formação de cidadãos pela capacitação de clientes, diz antropóloga 07/10/2012 - 05h21 Fonte Folha SP ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO O Estado perdeu sua capacidade de dar coesão às instituições modernas e o mercado amplia sua abrangência. A educação já não prioriza a formação de cidadãos, mas quer oferecer serviços a clientes, consumidores. A escola como conhecemos pode desaparecer. Alunos criam páginas na web para 'dedurar' deficiências de escolas A visão é da antropóloga argentina Paula Sibilia, 45, que lança amanhã no Rio o livro "Redes ou Paredes - A Escola em Tempos de Dispersão" (Contraponto). No ensaio ela faz um cáustico diagnóstico do ensino e avalia o impacto das mídias eletrônicas no aprendizado num mundo cada vez mais dispersivo e refratário à reflexão. Para ela, "na escola deveríamos aprender a pensar", resume. Nesta entrevista, concedida por correio eletrônico, ela fala de temas variados, como o uso de câmaras nas salas de aula, alunos com hiperatividade e ensino remoto. Sibilia escreveu também de "O homem Pós-orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais" (Relume Dumará, 2002, com reedição atualizada pela Contraponto, no prelo, 2012) e "O Show do Eu: A Intimidade como Espetáculo" (Nova Fronteira, 2008). Seu próximo livro tratará do fenômeno do culto ao corpo. Realiza um pós-doutorado em torno desse assunto na Universidade de Paris 8, na França. * Folha - Por que a sra. se interessou em escrever sobre escola não sendo da área de pedagogia? Paula Sibilia - Minha área de trabalho específica não é a pedagogia nem a educação. Contudo, me interessei pela crise da escola como um fenômeno contemporâneo, muito relacionado com outros que também venho investigando. Uma aposta básica percorre todos meus livros. Essa hipótese é a seguinte. Estaria se produzindo atualmente uma mudança histórica nos modos de construirmos o que somos --ou seja, isso que chamamos de subjetividades--, assim como nas maneiras de nos relacionarmos com os demais e com o mundo. Transformações como essas ocorrem constantemente. Não é a mesma coisa ser alguém agora --no mundo globalizado de início do século 21-- que no século 19, por exemplo, ou então na Idade Média, na Grécia clássica ou em outras culturas não ocidentais. Tudo isso tem uma relação profunda com a cultura na qual estamos imersos. O que mais me interessa deste processo que está acontecendo agora é uma mutação com relação às formas modernas de ser e estar no mundo. Aquelas que configuraram a subjetividade que teve seu apogeu nos séculos 19 e 20, protagonizando a era burguesa e industrial. Estaria ocorrendo agora um deslocamento no eixo em torno ao qual se organiza o que somos. Em que sentido? Se a confluência oitocentista entre o racionalismo ilustrado e os ímpetos românticos situou esse centro numa entidade misteriosa e oculta conhecida como interioridade --a alma, o espírito, o inconsciente, inclusive a mente incorpórea--, onde se acreditava que residia a essência de cada um, todo esse relato está perdendo força ultimamente, está se modificando para dar lugar a outras configurações. No final do século 20 e início do 21, um complexo movimento histórico, que envolve fatores sócio-culturais, políticos, econômicos e também muitas mudanças no plano dos valores e da moral, vem deslocando esse eixo da subjetividade. Como resultado dessas transformações, já não nos construímos prioritariamente ao redor daquele centro considerado interior. Ao contrário, e cada vez mais, a definição de quem é cada um se ancora naquilo que se vê. Com isso me refiro não apenas ao aspecto físico, à imagem pessoal e tudo aquilo que costumava ser considerado vãs aparências, diante da contundência da beleza interior, mas também ao comportamento visível. Ou seja, tudo isso que agora denominamos a imagem e a performance de cada um, que se supõe que deveriam ser constantemente aprimoradas e expostas ao olhar alheio, num presente vertiginoso que costuma engolir tanto o passado como o futuro. Por tais motivos, não surpreende que hoje proliferem as redes sociais, com seus perfis e sua infinidade de imagens e pequenos relatos pessoais que circulam pelas telas do mundo. Assim como os reality-shows e os programas de fofocas e confissões na televisão, ou as câmeras digitais que permitem fotografar todos os instantes da vida cotidiana e mostrá-los de imediato seguindo os códigos estéticos do espetáculo. Ao mesmo tempo, entra em declínio um conjunto de ferramentas e atributos que caracterizavam o antiquado homo psycologicus, aquele que brilhou no século 19 e início do 20: desde o diário íntimo até o pudor que envolvia a intimidade, por exemplo. Considerando todo esse pano de fundo, neste livro mais recente, sugiro que talvez a escola faça parte desse pacote que está sendo descartado pela gradativa expansão dos novos modos de vida. Entra em crise, assim, não só a estrutura arquitetônica e funcional do velho aparato escolar, mas também se metamorfoseiam as subjetividades e os corpos das crianças (e dos adultos) que costumavam povoar esses espaços. Assim como os valores e as regras que os pautavam, as premissas em que se baseavam e as ambições que projetavam. Eis um dos principais motivos, portanto, daquilo que chamamos a crise da escola no século 21, de acordo com a análise que apresento no livro. No seu livro "Redes ou Paredes" a sra. relata o desmoronamento no modelo de escola disciplinador e que formava a mão de obra para o mercado de trabalho capitalista. Esse modelo secular foi sendo corroído pelas "redes" que perpassam a sociedade atual. Na sua visão, quais devem ser as características da nova escola? É possível remar contra a maré individualista, consumista, dispersa e imediatista? A escola fundada na modernidade se destinava a formar não apenas a mão de obra para alimentar as demandas da sociedade industrial, mas também os bons cidadãos requeridos por cada Estado nacional. Já a própria palavra "formar" dá uma ideia de em que consistia esse projeto: modelar uma matéria-prima humana (a infantil) que se considerava inacabada. Mas a garotada de hoje talvez não seja mais idêntica àquela do século 19 e boa parte do 20, para a qual a escola foi inventada e que era, portanto, bem mais compatível com os modos de funcionamento dessa instituição. Mais do que entes inacabados com vistas a seu desenvolvimento futuro, as crianças atuais se apresentam como seres completos e bem definidos. Entre outras coisas, eles são os consumidores do presente, por exemplo, aos quais é preciso estimular, agradar, escutar e compreender, e dos quais se supõe que temos muito que aprender, em vez de se configurarem como os cidadãos do futuro que deviam ser formados porque ainda eram incompletos e não sabiam nada. Porém, mais do que ter sido "corroído pelas redes que perpassam a sociedade atual", como você diz na tua pergunta, esse modelo vem sendo questionado há várias décadas, por diversos motivos e de diferentes maneiras. É verdade, porém, que essa crise se intensificou muito nos últimos anos, em boa parte impulsionada e colocada em evidência pela popularização dos dispositivos móveis de conexão às redes informáticas. Quanto à nova escola, o livro todo é uma grande pergunta nesse sentido: uma interrogação acerca da escola de hoje à luz dos colégios de ontem, porém sempre apontando para alguma possível forma futura dessa instituição. O intuito é instigar no leitor a necessidade de pensar acerca dessa escola do amanhã, como um aporte mais a um debate que sem dúvida já está em andamento, mas que deveria aumentar e se tornar mais audaz. Não creio que tenhamos respostas muito concretas ou categóricas. Pelo menos essas não se encontram no meu livro. Mas penso que estamos num momento ideal para tentar formular essa questão do melhor modo possível: indagar o que é uma escola, por exemplo, para quê serve e como gostaríamos de transformá-la se queremos que se torne mais interessante. As épocas de crise são especialmente adequadas para lançarmos esse tipo de questionamentos tendentes a ampliar os horizontes do pensável e do possível. Aprender é algo tão importante que, embora custe e doa, vale a pena ousar com o pensamento para ver até onde ele nos leva. E convém lembrar que, mesmo em sua época mais gloriosa --quando ela funcionava bem e não se considerava que estivesse em crise--, a escola sempre esteve longe de ser algo perfeito. Por isso, penso que talvez possamos aproveitar este momento em que as certezas são abaladas para imaginar e inventar algo melhor. A sra. conta que a educação já foi o braço armado do iluminismo. Hoje, o que é a educação? Para que serve? Que tipo de cidadãos ela está formando? A educação formal, tal como nós a conhecemos, é um instrumento idealizado na era moderna e industrial para dar substância aos cidadãos de cada nação. O que sugiro em meu ensaio é que tanto o mundo como seus habitantes mudaram muito nos últimos dois séculos. Era inevitável que essas transformações afetassem também a escola, daí a incompatibilidade que se observa agora entre nossas crianças e essa velha instituição. Empurrado por uma série de mudanças econômicas, socioculturais e políticas que sedimentaram nas últimas décadas, o Estado tem perdido sua capacidade de dar coesão e sentido às demais instituições modernas,entre elas, a escola. Essas ficaram mais ou menos à deriva e com a urgência de se adaptarem às novas regras do jogo. Por sua vez, o mercado tem expandido sua abrangência de modos que teriam sido impensáveis algum tempo atrás. Penetra agora em âmbitos que antes lhe estavam vedados. Assim, o espírito empresarial vai impregnando todas as instituições, inclusive a escola - e, também, os corpos e as subjetividades que por ela circulam. Nesse contexto, converter as crianças de hoje nos cidadãos do amanhã não parece ser a meta prioritária de boa parte dos colégios atuais, que tentam se pôr ao dia oferecendo um serviço atraente para seus clientes. Mais do que uma educação, seria então uma capacitação o que essas instituições com inspiração empresarial procuram fornecer: uma série de instruções úteis que prometem a seus clientes uma inserção com sucesso no mercado laboral. Essas mudanças que estão ocorrendo são sutis, porém contundentes, e ecoam outras transformações igualmente importantes que estão se dando em todas as esferas. Embora ainda não saibamos com certeza para onde estamos indo nesse processo, penso que é muito grave o risco de que instâncias como o mercado e a empresa assumam os papeis antes desempenhados pelo Estado. Claro que, com isso, de modo algum estou reivindicando um apego aos mecanismos imperfeitos --e, em boa medida, ultrapassados-- da escola tradicional. Mas tampouco creio que devamos substituí-la por uma gama de mercadorias à disposição dos diversos tipos de consumidores - um movimento no qual, por outro lado, muitos dos antigos cidadãos ficariam de fora. Creio que a reformulação deveria ser bem mais profunda, assumindo que é fruto de um processo histórico extremamente complexo que estamos protagonizando, e cujo desfecho também está em nossas mãos. A sra. observa a transformação de alunos em consumidores, clientes e da escola em empresa. Mas isso não é apenas uma característica do capitalismo? Quais são os impactos disso na sociedade? O capitalismo vai se transformando com os vaivens da história. Além disso, trata-se de apenas um ingrediente, sem dúvida muito importante. Porém não é o único fator envolvido na complexa trama de influências que nos leva a ser o que somos --e que levou a educação formal à sua atual crise. Então, quando a escola vivenciou seu apogeu como instituição moderna, na segunda metade do século 19 e na primeira do 20, o capitalismo também estava em auge, embora em outra etapa de seu desenvolvimento. No entanto, as crianças daquela época não eram prioritariamente identificadas com seus papéis de clientes ou consumidores, por exemplo. E as escolas desdobravam outras estratégias para consumar sua missão civilizadora. Acredito que a pergunta que devemos formular, para tentarmos esclarecer este aspecto, é a seguinte: de que tipos de sujeitos o mundo contemporâneo precisa, e por quê? Comparando esse quadro com aquele do século 19, talvez possamos iluminar um pouco os sentidos dessas transformações. E, em função disso, tomar decisões. Como a escola enfrenta essas mudanças? A escola não é algo isolado do resto da sociedade, portanto ela também vai mudando ao compasso das transformações socioculturais, políticas e econômicas. No entanto, essa capacidade de adaptação é limitada: seu formato não tem uma flexibilidade total, e pode chegar um momento em que não dê mais conta das mudanças que ocorrem ao seu redor e se quebre, perdendo sua eficácia e seu sentido. Assim como num tempo passado nem muito distante, essa instituição não existia, ela pode muito bem vir a desaparecer no futuro, ou a se transformar tão radicalmente que deva ser redefinida. A sra. discute o uso de computadores nas salas de aula e coloca alguns problemas. Como a informática deve ser usada como instrumento pedagógico? A sra. vê aspectos negativos na informática na formação de estudantes? A informatização das aulas costuma se apresentar como panacéia que irá resolver todos os problemas que atualmente assediam a escola. Eu não tenho dúvida de que se trata de algo importantíssimo, mas também tenho certeza de outra coisa: a mera incorporação de recursos tecnológicos às salas de aula tradicionais não vai resolver todos esses conflitos; podendo, inclusive, intensificar alguns deles. Esse é, justamente, um dos nós problemáticos enfocados no livro. Se pensarmos na escola como uma máquina ou uma tecnologia, ou seja, como uma ferramenta desenhada em certo momento histórico (a era moderna e industrial) para produzir determinados resultados (formar os cidadãos do futuro), podemos conjecturar que esse complexo artefato talvez tenha se tornado incompatível com as crianças de hoje em dia. Estas, por sua vez, não só rejeitam o dispositivo pedagógico que constitui a escola, mas se fusionam de modos cada vez mais afinados com outro tipo de aparelhagem: as chamadas novas tecnologias, particularmente os artefatos móveis de acesso à internet e comunicação em redes. Essas máquinas implicam certos estilos de vida e certas subjetividades, ou seja: determinados modos de ser e estar no mundo, de se construir o que se é e de se relacionar com os outros. E todas essas novidades respondem de maneira bem mais eficaz às exigências do mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que demonstram seu crescente desajuste com relação à tecnologia escolar. Por isso, creio que temos que refletir bastante sobre a possível fusão entre ambos os universos: o dispositivo pedagógico no qual se baseia a escola tradicional, por um lado, e o universo das redes informáticas, por outro lado. Eis o conflito entre as paredes e as redes que aparece no título de meu livro. O que eu sugiro nesse ensaio é que talvez no seja tão simples incorporar as novas tecnologias às aulas para atualizar os colégios e, desse modo, superar sua crise. Porque esses aparelhos não são ferramentas neutras, como se costuma dizer. O que tampouco significa que sejam bons ou ruins, mas simplesmente que não são instrumentos neutrais _até porque não existem os instrumentos neutrais!. Então, embora possam ser apropriados e usados de diferentes maneiras, eles estão carregados de valores e tendem a suscitar certos modos de uso e certas formas de vida, que se distanciam muito das regras escolares e talvez não sejam compatíveis com seu funcionamento. Além de subverterem os usos do tempo e do espaço instituídos pelo regulamento escolar, as novas tecnologias entram em choque com um requisito básico da escola e outras instituições modernas com ela compatíveis: o confinamento. Ou seja, a ideia de que é necessário encerrar todos os sujeitos durante um determinado período de tempo em um espaço bem delimitado, todos os dias, com uma estrita regulamentação de cada movimento. Essa táctica foi muito eficaz ao longo do último par de séculos e define a escola por excelência, assim como a prisão, a fábrica, o hospital, embora já faça um bom tempo que vem perdendo sua antiga potência. Mas a popularização dos dispositivos móveis de informação e comunicação promete aniquilá-la de vez, não só ao diminuir ainda mais sua tradicional eficácia, mas também porque é capaz de deixá-la sem sentido. Para que se trancar todos juntos durante varias horas por dia, entre quatro duras paredes, se cada um tem um aparelho conectado à rede? Não é uma pergunta banal, que possa ou deva ser respondida às pressas. A sra. relata a queda na importância da leitura e da escrita no ensino atual. Quais são as consequências desse fato para a formação dos alunos? Outros modos de ler e escrever estão se desenvolvendo atualmente, na era da internet e dos celulares, bem diferentes daquelas modalidades que vigoraram no século 19, por exemplo, em pleno auge das cartas e dos romances. Também é preciso considerar a influência que os meios de comunicação audiovisuais vêm exercendo ao longo de todo o século 20 e, mais recentemente, com a incorporação das mídias interativas. As consequências de tudo isso são imensas e acredito que ainda não saibamos exatamente em que consistirão. Eu destacaria, porém, que junto com a crise nas hierarquias escolares e familiares, isso também ajudou a abalar o mito da transmissão, um pilar fundamental da escola tradicional. Segundo esse mito, o mestre é aquele que sabe, aquele que professa seu saber. E, portanto, deve transmitir esses conhecimentos aos alunos, que são aqueles que não sabem. Embora tudo isso seja discutível e, de fato, venha sendo questionando há vários anos, durante muito tempo se acreditou firmemente que as coisas eram assim. Esse foi um dos motivos pelos quais a escola funcionava e não se considerava que estivesse em crise. Agora que se costuma admitir que as crianças "sabem mais" que os docentes em áreas tão bem cotadas como a tecnológica e que se generaliza o império da informação e da opinião, com uma multiplicação do acesso aos canais midiáticos, esse mito da transmissão hierárquica do saber termina de desabar. Isso não é necessariamente algo ruim, pois pode nos levar a inventar outras formas de vinculação com os demais, novos modos de dialogar e pensar e que, portanto, sejam mais ricos e interessantes para nós. No entanto, convém ressaltar que nada disso está garantido. De fato, nas atuais circunstâncias é muito difícil criar as condições necessárias para que esse diálogo possa ocorrer. A sra. critica a absorção pela escola da lógica mercantil e do empreendedorismo. Por que a sra. acha que essa ideologia é danosa para a escola? Não se trata de constatar se é algo danoso para a escola ou não. O que tento suscitar com o livro é um debate sobre os fundamentos dessas tendências, procurando entender por que isso está acontecendo agora e quais seriam suas implicações. Uma pista para responder a isso talvez seja que o mundo contemporâneo precise mais de empresários ou empreendedores que de empregados ou funcionários, por exemplo. Após o qual seria necessário perguntar por que e para que. Mas, sobretudo, minha intenção é questionar as possibilidades de assimilação dessas novas tendências pela lógica escolar, que desde suas origens foram normalizadora e homogeneizadora, baseadas nos princípios igualitários e universais que norteavam o projeto moderno. Já os discursos em favor do empreendedorismo, por sua vez, destacam certos valores do discurso neoliberal mais recente, como a singularidade, a criatividade, a distinção e a competência, por exemplo. Mesmo detectando graves falhas naquele projeto mais antigo, que agora estaria perdendo vigência, acho importante ressaltar que seria muito pobre se, em lugar desses esquemas hierárquicos e centralizados com supervisão estatal e fortemente institucionalizados, fosse criada uma nova estrutura decalcada em moldes empresariais e mercadológicos, comandada por aquela caricatura publicitária do consumidor infantil com ares empreendedores que sabe de tudo e só quer se dar bem vencendo os demais. A sra. discute a questão de que a escola necessariamente precisa ser divertida, atraente. Por que isso não é fundamental? Eu não considero que não seja fundamental, de modo algum! O que procuro indagar, também neste caso, são os percursos históricos dessa demanda por diversão também dentro da escola,assim como ocorre no ambiente laboral, tentando desnaturalizá-la para compreender seus sentidos. Acho que uma boa ilustração desses processos é o título de uns dos livros com os quais dialoga meu ensaio, "Pedagogia do Entediado", publicado em 2005 pelos autores argentinos Cristina Corea e Ignacio Lewkowicz. Que, por sua vez, responde ao clássico de Paulo Freire intitulado "Pedagogia do Oprimido", de 1968. Quatro décadas separam ambas as publicações e a mudança nos títulos é sintomática, porque, nesse período, o entretenimento se instalou no cerne de um modo tipicamente contemporâneo de viver. Todos concordam, hoje, que é necessário oferecer diversão aos entediados alunos do século 21, algo muito diferente do que acontecia com os oprimidos de alguns anos atrás, aos quais era preciso emancipar por meio da alfabetização e do conhecimento. Isso não significa que a opressão ou a alienação e nem sequer o analfabetismo tenham sido erradicados, sobretudo na América Latina. Mas sim que nosso drama histórico foi redefinido e que, agora, os discursos são outros. Tanto as crianças como os adultos de hoje pretendem que as aulas sejam divertidas, não exatamente libertadoras. Creio que isso evidencia uma mudança importante nas formas de nos relacionarmos conosco, com os demais e com o mundo, e tudo isso também pode nos oferecer algumas pistas sobre a tal crise que hoje vivenciamos. No livro a sra. cita uma experiência de uma escola em Estocolmo que derrubou paredes de salas de aula e deu um laptop para cada aluno. O que pensa disso? É um dos exemplos que menciono no livro, sim, mas não precisamos ir tão longe para observar experiências desse tipo. Podemos aludir aos projetos antes conhecidos como "um computador por aluno", por exemplo, que estão sendo implementados em vários países da América Latina. Essa iniciativa está um pouco mais atrasada no Brasil. Mas também aqui há movimentos nesse sentido, com projetos-piloto e planos de implantação em escala nacional. Penso que se trata de apostas muito interessantes e corajosas, embora também cheias de riscos e com custos altíssimos, não apenas econômicos. Pois ninguém sabe o que vai acontecer quando esses dois universos aparentemente incompatíveis _o dispositivo pedagógico e as redes informáticas-- terminem de se fundir ou, então, entrem em colapso. Por isso, eu digo que a informatização das aulas é apenas um primeiro passo. E é, sobretudo, o mais fácil de dar, sem desmerecer suas dificuldades, porque depois virão desafios gigantescos. Primeiro, está o risco de que os aparelhos se convertam num novo agente de dispersão. Após ter permitido o acesso ao fluxo de informações, e mesmo sabendo que seria tolo ou inútil tentar barrá-lo, o problema consistirá em ensinar os alunos a lidar com ele. Algo que hoje ninguém sabe fazer direito. Então, como capacitar os docentes para que estejam à altura desse desafio? Além disso, ainda resta consumar sua integração a um projeto pedagógico realmente inovador, capaz de reconcentrar a atenção dos alunos na aprendizagem. Aprendizagem que, de acordo com a imensa maioria desses projetos hoje em andamento, continuará a ocorrer prioritariamente entre as paredes da sala de aula. Ou, como no caso da escola sueca que você mencionou, dentro dos muros do estabelecimento. Tudo isso parece conspirar contra a plena consumação da vida em rede, motivo pelo qual acredito que ainda deve ser muito bem pensado e discutido. Quais experiências inovadoras merecem ser mais estudas e implantadas? Estamos num momento único, no qual a escola enfrenta um grau de questionamento inédito. Há muita experimentação nesse campo, talvez como em nenhum outro momento histórico. Mas muitas dessas alternativas são destinadas a poucos: aqueles que podem pagá-las. Nesse sentido, cabe insistir sobre algo primordial: o perigo de que instâncias como o mercado e a empresa ocupem os papéis antes desempenhados pelo Estado, por exemplo. Algo que seria catastrófico para boa parte da população. Por isso, creio que ainda falta debater bastante para que estejamos em condições de tomar decisões políticas tão vitais, tanto em nível micro como em escala macro. E essa reflexão, além de ser urgente, não deveria ficar restrita ao campo pedagógico. A sra. discute a questão de que "dialogar não é educar". O que é educar do seu ponto de vista? O que é educar, ou o que deveria ser, é um problema que nossa sociedade inteira deveria pensar e discutir, não apenas os especialistas dessa área. Creio que sua definição está mudando. Meu livro tenta contribuir para esse debate, a partir de um campo considerado exterior e inclusive alheio a esse tipo de reflexões: o da comunicação, bem como o da antropologia e o da análise genealógica das subjetividades. Então, quando apresento esse problema da possível oposição entre o diálogo e a educação formal, o faço na tentativa de defender esse intercâmbio como uma possibilidade inédita de ensino e aprendizado. Mas as condições para que esse diálogo entre professor e aluno ocorra de fato, hoje em dia não estão dadas de antemão. Sobretudo porque foi corroído o solo institucional que antes sustentava e dava sentido a essa relação. Portanto, é preciso um imenso trabalho cotidiano e local, especifico, quase artesanal, de construção e fortalecimento desse vínculo em cada caso, com base em outros valores e premissas, embora sempre com vistas ao aprendizado. Eu, particularmente, acho que na escola, ou em seus eventuais sucedâneos, deveríamos aprender a pensar. Não a usar as tecnologias. Ou melhor: não somente isso. Que, por outro lado, costuma se efetuar com entusiasmo e bastante sucesso fora do colégio. Mas ensinar a pensar é muito mais difícil, e sem dúvida tem pouco a ver com a informação e com a opinião, dois ingredientes que saturam nosso cotidiano do século 21 e que imperam nas redes. Ao contrário, até: para poder pensar hoje em dia é preciso cultivar certa capacidade de resistir ao fluxo constante de informações e às conexões intermitentes, sem procurar bloqueá-las ou se isolar, mas também sem sucumbir à dispersão promovida pelas infinitas distrações nem à banalidade da opinião. Para pensar, por tanto, é preciso criar as condições necessárias para que se produza um diálogo, uma situação que permita reflexionar e processar a experiência. De modo que o problema ante o qual nos encontramos é bem mais complexo e profundo que uma mera atualização tecnológica incorporando as novas tecnologias, ou estimulando a capacidade de nos mantermos atualizados num mundo em constante movimento de renovação e descarte. Em vez disso, trata-se de ensinar às crianças algo que provavelmente ninguém saiba: como pensar, vincular-se com os outros e assentar a experiência num ambiente convulsionado por tamanho grau de dispersão. Esse é, creio eu, a questão primordial. Ou seja: um desafio e tanto! Como a sra. analisa as diferenças entre o ensino público e o privado no Brasil? A brecha entre ambos é uma marca do presente e, também, tanto um indício como uma consequência da crise da escola enquanto instituição moderna por excelência. Isso não apenas no Brasil, embora aqui essas diferenças sejam mais profundas e cruéis que em outras partes do mundo. Os processos históricos que analiso em meu livro levaram à dissolução de certa missão salvacionista que caracterizava a escola moderna (laica, gratuita, pública e obrigatória), firmemente apoiada no solo institucional proporcionado pela solidez estatal e pela lei universal. É possível perceber o declínio desse projeto no abismo que se abriu entre as instituições educativas públicas e privadas, o que não deixa de ser um problema gravíssimo de nossa sociedade. No livro a sra. relata experiências no exterior de pagamento em dinheiro para alunos que obtêm bons resultados. Por que esse não é um caminho a ser seguido? Não digo que não seja um caminho a ser seguido, até porque essa não é minha função neste debate. Prefiro priorizar mais a formulação de boas perguntas do que fornecer respostas definitivas, até porque duvido que elas existam neste momento. Então, também neste caso, o que procurei fazer foi pensar as implicações desses gestos que estão começando a proliferar. E que são aparentemente tão opostos à lógica escolar em sua versão mais tradicional: recompensar em dinheiro os alunos que, de acordo com esse outro discurso mais antigo, apenas estariam cumprindo com seus deveres obrigatórios e universais para se transformarem, futuramente, em homens de bem. Por que isto deixou de ser impensável, escandaloso ou moralmente condenável e começa a ser implementado em vários países por parecer sensato e até mesmo lógico? Que mundo era aquele que inventou e consolidou a escola tradicional, e que sujeitos queria formar por meio dessa aparelhagem, em oposição ao que ocorre atualmente e à direção para qual estas novidades apontam? A sra. mostra que cresce o diagnóstico de hiperatividade entre alunos. Por que isso ocorre? É possível dizer que há um certo conluio entre professores, pais e médicos para "domesticar" crianças? O que deve ser feito? Trata-se de um traço das subjetividades contemporâneas, especialmente presente nas crianças --mas não apenas nelas--, que denota sua incompatibilidade com a parafernália escolar. Por isso é incômodo e as instâncias escolares procuram punir ou controlar. No entanto, fora da escola e em muitos âmbitos da atualidade, ser hiperativo é algo extremamente útil, estimulado e desejado. Mas convém frisar que não se trata só das crianças. Os pais, os docentes e a sociedade em geral, todos estamos envolvidos nestas intensas transformações nos modos de ser e viver. O mundo contemporâneo solicita de todos nós essas atitudes e disposições, que conspiram contra a atenção concentrada em longo prazo, por exemplo. Embora a escola continue a rejeitá-las numa batalha que, muitas vezes, está perdida de antemão. Essa contradição se tornou ainda mais evidente com o auge das comunicações digitais, que são abertamente opostas à estrutura escolar tradicional. Sobretudo a sua lógica baseada no confinamento espaço-temporal e, também, na medida em que requerem e incitam uma atenção espasmódica, multitarefa, hiperativa. Recentemente estudantes do tradicional colégio Rio Branco, em São Paulo, protestaram contra o uso de câmeras nas salas de aula. Qual sua visão sobre o tema? Esse foi um assunto especialmente focalizado no meu livro, por ser outro sintoma importante da atual crise da escola, bem como da sociedade contemporânea de um modo geral. Essas tentativas de vigilância eletrônica e registro informático são fruto de certas transformações que vem ocorrendo nos últimos tempos e que deram nascimento também aos condomínios fechados, aos carros blindados e aos alarmes ativados com senhas digitais ou cartões magnéticos para proteger os lares ou outros prédios de eventuais ataques exteriores. Ante a crise generalizada do projeto moderno e das instituições nas quais este se baseava (tais como a escola), as redes eletrônicas são utilizadas para tentar controlar essa falta de segurança que não para de aumentar. Supõe-se que esta não será conseguida pela repressão culposa dos desejos transgressores, tão cara à tradição escolar, e sim por meios técnicos. Por isso, essas câmeras instaladas nos colégios parecem continuar e atualizar seu velho esquema da vigilância hierárquica. Mas há diferenças bastante significativas, que mostram até que ponto estamos nos distanciando daquilo que costumávamos ser. Não se aponta, neste caso, ao disciplinamento precoce e vertical de todos os corpos, inculcando uma moral capaz de internalizar a culpa, promover a normalidade e levar ao bom comportamento graças ao autogoverno assim aprendido, como era a proposta básica das instituições modernas. Em vez disso, a vigilância eletrônica procura obter um controle permanente, horizontal, múltiplo e minucioso, que não brota de dentro dos sujeitos, mas se impõe de fora. E costuma se apoiar na ilusão (para os pais, docentes e outros adultos) de que desse modo será possível exercer algum tipo de controle sobre os corpos hiperativos e indisciplinados. Além das câmeras, isso também costuma ser efetuado por meio de chips subcutâneos que enviam mensagens aos celulares dos pais, por exemplo. Ou por uniformes inteligentes que registram a entrada e saída dos alunos. Trata-se, em todos os casos, de tentativas de utilizar as redes para compensar a crise das paredes. No livro eu menciono alguns casos de resistências à instalação de câmeras nas escolas, comparáveis a esse que ocorreu recentemente em São Paulo. Porém, o curioso é que essas revoltas costumam ser feitas em nome da privacidade individual. Algo que, por outro lado, as próprias redes eletrônicas estão esfacelando. Na maioria dos casos, de modo consentido e até desejado. Quanto ao combate à insegurança que vem de fora dos cada vez mais ameaçados muros escolares, as câmeras têm recebido pouquíssima oposição ou mesmo discussão. O ensino à distância, que já atinge 15% no Brasil, é bom ou ruim para o sistema de ensino? Creio que a educação a distância pode ser, sim, um dos caminhos a serem explorados para reinventar o aprendizado, já que o confinamento tem perdido sua antiga eficácia e boa parte de seu sentido. Com os avanços das redes informáticas, a legitimidade desse encerramento sistemático e cotidiano provavelmente termine de desabar. Não entanto, a opção da educação à distância parece bem mais adequada para o ensino superior que para os outros níveis da educação formal. Ainda é muito pouco o que sabemos sobre isso: é preciso experimentar, discutir e pensar muitíssimo.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Um quinto dos jovens nem estuda, nem trabalha, nem busca emprego

Um quinto dos jovens nem estuda, nem trabalha, nem busca emprego Jornal O GLOBO 15/09/12 São 5,3 milhões os brasileiros entre 18 e 25 anos que estão fora da educação formal e do mercado de trabalho, quase a população da Dinamarca RIO e SÃO PAULO — Para Letícia Protásio, “os dias passam devagar”. “Sobra tempo para ver as coisas do bebê”. Sobra tempo porque a jovem de 20 anos não está estudando, tampouco trabalha, e muito menos procura emprego (“Quem vai empregar uma grávida?”). Ela é um dos 5,3 milhões de jovens, entre 18 e 25 anos, que estão fora da educação formal e do mercado de trabalho — quase a população da Dinamarca. Um problema que atinge um em cada cinco jovens (ou 19,5% dos 27,3 milhões de pessoas dessa faixa etária), aponta o estudo exclusivo “Juventude, desigualdades e o futuro do Rio de Janeiro”, coordenado pelo professor Adalberto Cardoso, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ele teve por base microdados do Censo Demográfico de 2010, do IBGE. As razões que levaram Letícia a interromper os estudos e largar o emprego passam pela maternidade — um dos principais motivos para as mulheres abandonarem os estudos e adiarem a entrada no mercado de trabalho. Pelos dados do especialista do Iesp, o número de moças que fica em casa é quase o dobro do dos rapazes: respectivamente, 3,5 milhões e 1,8 milhão. Mas a maternidade não é a única explicação. O forte desalento, segundo Cardoso, ajuda a entender os números alarmantes. Que ficam mais graves quando se leva em conta que, em 2010, ano do Censo, a economia brasileira cresceu 7,5%. — Esses jovens que ficam fora têm qualificação muito ruim. Tão ruim que, ao abandonarem a escola, o mercado de trabalho, mesmo em plena atividade, não os absorve. Resultado: eles desistem, e são os pobres os mais afetados — disse Cardoso, acrescentando que esse fenômeno é muito urbano. — Entram nesses números os jovens que foram puxados para a criminalidade. Na parcela mais pobre da população brasileira, com renda per capita de até R$ 77,75, quase metade (ou 46,2%) dos jovens estava fora da escola e do mercado de trabalho. — A escola não consegue atrair o jovem, levando a uma elevada evasão escolar. Em consequência, ingressar no mercado de trabalho vai ficando mais e mais difícil — explicou Cardoso. Professor vê desalento estrutural O gargalo, segundo o professor Fernando de Holanda Filho, da Fundação Getulio Vargas (FGV), está na baixa taxa de matrícula do ensino médio. Hoje, segundo ele, ao menos 50% dos jovens trabalham sem ter nível médio: — Quando vão para o mercado de trabalho, não conseguem se colocar. Esse cenário cria um desalento estrutural, que se complica a cada ano. É um problema de longo prazo. O paulistano Eduardo Victorelli, de 22 anos, não terminou o ensino médio e não buscou cursos técnicos ou profissionalizantes depois que largou a escola, aos 17 anos. Embora pareça ter um futuro incerto, ele afirma com segurança que será jogador de futebol: — Meus pais e minha família me apoiam e conseguem pagar as contas. Acreditamos que o salário de jogador mudará nossa vida. Ele largou a escola para ir ao Paraná, tentar jogar no Coritiba. Mas o salário não bastaria para comer, morar e viver em outro estado, e voltou para São Paulo. Desde então, jogou em dois pequenos times. Ele mora em Sapopemba, bairro simples da Zona Leste, com os pais, avós e tios. O afastamento dos estudos e do trabalho vai comprometer — e muito — o futuro desses jovens, diz Cardoso: — Parte dessas pessoas vai se colocar como assalariado sem carteira assinada. Esse jovem de hoje vai carregar o peso desse abandono pelo resto da vida — disse Cardoso. Letícia vive com o namorado, que ganha R$ 1.500 por mês como divulgador. Em Jacarepaguá, eles têm o apoio da avó e da mãe dele. — Sei que agora vou ter que ficar em casa, cuidando do meu filho. Talvez por um, dois anos. Para Hildete Pereira, coordenadora do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero da UFF, faltam políticas públicas de controle da natalidade e apoio para cuidar de crianças. A cobertura de creches passou de 7% das crianças de 0 a 3 anos em 2000 para 21% em 2011: — Melhorou, mas ainda há déficit. Enquanto isso, país amarga escassez de mão de obra O contingente de 5,3 milhões de jovens inativos no Brasil ocorre num momento em que o país tem baixas taxas de desemprego e os empresários se queixam de escassez de mão de obra. — É um desperdício de recurso, especialmente no momento econômico do país — disse Naércio Menezes, professor de economia do Insper, acrescentando que, quando o jovem deixa de enxergar os benefícios da educação, ele deixa de ter um futuro melhor. Essa geração perdida vai fazer falta para um crescimento sustentado, advertiu Paulo Levy, economista do Ipea. Ele explica que as empresas terão que aumentar a produtividade dos que estão trabalhando. Mas o crescimento econômico do país também permite que uma ínfima parcela desse contingente tenha respaldo em casa para pensar na carreira. Além disso, na chamada “geração canguru” os jovens deixam a casa dos pais mais tarde. Nesse universo, estão pessoas que se preparam para concursos públicos ou tiram um sabático para viajar. O Iesp-Uerj só considerou quem não frequenta a educação formal. Natália de Miranda, de 24 anos, estuda em casa para o concurso para magistratura do trabalho: — Estudo de seis a oito horas por dia e, muitas vezes, ainda ouço que não estou fazendo nada. Mas o cenário pode ser ainda pior. Ao incluir os jovens que buscam trabalho mas não conseguem, os 5,3 milhões saltam para 7,2 milhões. Ou seja, a cada quatro jovens entre 18 e 25 anos, um está parado. http://oglobo.globo.com/economia/um-quinto-dos-jovens-nem-estuda-nem-trabalha-nem-busca-emprego-6109028#ixzz26esIk2Ox .

terça-feira, 31 de julho de 2012

O mundo depois da Primeira Guerra Mundial - Gripe Espanhola -

Depois da Primeira Guerra, a Europa já não era a mesma. Havia perdido a influência no mundo. Mergulhava rapidamente em uma crise que duraria até as vésperas de outra guerra: A Segunda Guerra Mundial. A Alemanha teve quase 2 milhões de mortes; A França e a Inglaterra, juntas mais de 2 milhões. A Rússia, incluindo a fase da guerra civil, perdeu perto de 5 milhões de habitantes. Enfim, a quantidade de mortos fazia qualquer outro conflito anterior parecer uma pequena batalha perto da carnificina provocada pela Primeira Guerra Mundial. Os prejuízos materiais eram incalculáveis. O comércio estava praticamente a zero. Somente os países que ficaram distantes do palco da guerra, como os Estados Unidos e o Japão, conseguiram tirar proveito do comércio europeu. Também para a América Latina o conflito trouxe alguns benefícios. A Primeira Guerra Mundial foi o prenúncio da crise total que se abateu sobre a Europa, ao mesmo tempo que marcou a mudança do centro das decisões para o outro lado do Atlântico. Também acirrou as contradições do capitalismo, a ponto de provocar o aparecimento de uma nova forma de sociedade: a socialista. História e Saúde A Primeira Guerra Mundial, considerada um dos mais sangrentos episódios da história da humanidade, é vista por muitos historiadores como um marco no nascimento do mundo moderno. Mas o nascimento desse mundo moderno custou muito em termos de vidas. No total as estimativas variam entre 9 e 10 milhões de mortos. A maioria esmagadora dos soldados era formada por jovens. Muitos desses jovens eram estudantes de Oxford e Cambridge , as mais famosas universidades inglesas. Porém não só as balas e as bombas mataram durante os conflitos. A epidemia da chamada gripe espanhola chegou a matar muito mais do que a luta. Veja o exemplo: os Estados Unidos, que se envolveram na guerra só depois de 1917, tiveram cerca de 115 mil soldados mortos, mas a gripe espanhola matou mais de 500 mil americanos. A gripe espanhola mais do que guerra No outono de 1918, enquanto os aliados empurravam as linhas alemãs para leste, indicando que a guerra estava perdida para a Alemanha, um desastre maior do que a própria guerra estava acontecendo no mundo: o surgimento do vírus de uma gripe desconhecida até então, que se espalhou em proporções de uma pandemia. A gripe havia surgido na primavera daquele ano. O lugar exato onde se originou é desconhecido até hoje, mas as teorias popularizadas de sua origem acabou dando o nome pelo qual ficou conhecida, GRIPEESPANHOLA. Uma primeira onda da gripe chegou ao auge nos meses de junho e julho de 1918, mas foi em outubro e novembro que o número de mortes atingiu índices alarmantes. Foi somente naprimavera de 1919 que a gripe começou a diminuir a sua devastadora tarefa de matar. A mortalidade epidêmica foi simplesmente monstruosa. Na França,calcula-se que tenham morrido cerca de 166 mil pessoas na Alemanha, 225 mil, na Inglaterra 230 mil. Nos Estados Unidos, mais de 550 mil pessoas morreram em conseqüência da epidemia da chamada gripe espanhola. Na Ásia, uma das grandes atingidas foi aÍndia, com mais de 1.6 milhões de mortos. A gripe teve um particular impacto sobre a população jovem, entre crianças e adolescentes. Cerca de 25% das vítimas tinham 15 anos de idade ou menos, e 45% tinham entre 15 e 35 anos. Ao todo, mais de 20 milhões de pessoas morreram vítimas da epidemia - número muito maior do que o provocado pela guerra. Muitas explicações para as origens da gripe surgiram na época, mas o agente causador não tinha ainda sido isolado; portanto, permaneceu desconhecido. A gripe teve um caráter de praga, por isso foi vista por muitos como um castigo divino para punir a maior carnificina já feita na história do ser humano, em especial na frente ocidental. Outras hipóteses surgiram na época para explicar as condições que favoreceram a difusão da gripe. Segundo uma dessas teorias, bastante divulgada, a gripe se deveu ao enfraquecimento dos habitantes das cidades, carentes que estavam de alimentação apropriada, dando condições para o aparecimento de doenças. E, na frente de batalha, condições de insalubridade, infestação de piolhos, ratos etc. Todo tratamento que se experimentou contra a gripe se mostrou ineficaz, e a ignorância sobre sua origem impedia a fabricação de uma vacina. A causa viral da gripe espanhola só foi descoberta em fins de1933, quando o vírus mutante já havia praticamente desaparecido. TRATADO DE VERSALHES: O FIM DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL Em 28 de junho de 1919, os países europeus assinavam o Tratado de Versalhes, que deu fim à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O acordo de paz documentava a Alemanha como a responsável pelo conflito mundial e estabelecia as despesas, multas e exigências políticas, militares e econômicas que deveriam ser cumpridas pelo país. Punitivo, o documento conta com 440 artigos e mais uma quantidade considerável de apêndices que redefinem as fronteiras da Europa, obrigando os povos germânicos a devolver territórios e ceder alguns como compensação da guerra. Assinado na cidade de Versalhes, na França, o tratado demorou cerca de seis meses para ter todos os seus termos definidos e é conhecido como uma continuação do chamado Armistício de Novembro, assinado em 1918, em Compiègne, e que pôs fim aos confrontos armados. Muitos historiadores posicionam o crescimento do nazismo como uma conseqüência cultural do Tratado de Versalhes. Sabe-se que o rigor empregado em relação ao posicionamento da Alemanha na guerra foi massacrante para a economia alemã, que ficou devastada com a guerra e as despesas seguintes. Desta forma, as imposições fizeram com que se espalhasse um forte sentimento de revanchismo e revolta entre a população alemã. Para se ter uma ideia, o período do pós-guerra, entre 1920 e 1930, é marcado por uma crise moral e econômica na Alemanha, que deu espaço à filosofia nazista e a teoria do povo ariano. Mais tarde, este sentimento levaria o país à participação em um novo conflito armado: a Segunda Guerra Mundial. O montante total pago pela Alemanha foi definido pela Tríplice Entente, principalmente França e Inglaterra, durante o estabelecimento da Comissão de Reparação. O valor oficial é de 269 bilhões de marcos alemães – dos quais 226 bilhões, como principal, e mais 12% do valor das exportações anuais da Alemanha. Em 1921, a dívida foi reduzida para 132 bilhões de marcos. CONSEQUÊNCIAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL A Primeira Guerra Mundial terminou com a rendição da Alemanha em 11 de novembro de 1918. A partir daí, a Europa passou por uma reconfiguração de poder. As principais transformações do pós-guerra ocorreram com a edição do Tratado de Versalhes e com as novas definições no mapa político-econômico mundial com o surgimento de novas grandes potências. Tratado de Versalhes Em Versalhes, França, foi realizado o Tratado de Versalhes (1919). Este importante encontro estabeleceu que: • A Alemanha era a única culpada pela guerra; Por ter causado a guerra, os alemães teriam de pagar indenização aos vitoriosos (Inglaterra e França); O exército alemão ficaria limitado ao máximo de 100 mil soldados (número significativamente baixo); • A partir de agora os alemães estavam proibidos de produzir armas e munições; Os territórios conquistados durante a guerra seriam perdidos; A região da Alsácia-Lorena foi reincorporada à França. Porém, as definições do Tratado de Versalhes apenas acentuaram o descontentamento alemão pela derrota na Guerra. Na verdade, um sentimento de revanche enxeria os alemães de ódio pelos “vencedores” do conflito. Sentimento, aliás, que seria muito bem explorado pelos nazistas. Os Estados Unidos após a Guerra Se os estadunidenses antes da guerra eram devedores da Inglaterra, agora saiam do conflito como credores. Os Estados Unidos da América deixavam de ser uma nação emergente para se tornaram numa nova potência mundial. Ingleses e franceses após a Guerra Inglaterra e França que entraram na guerra como as principais potências mundiais, saíram do conflito em grave crise econômica devido às perdas de guerra. Outro problema sério que tiveram de enfrentar foi o de reconstrução de suas principais fontes de energia, abaladas ou perdidas durante o conflito. Criação da Liga das Nações A Liga das Nações, uma espécie de antecessora da ONU, foi criada como um mecanismo internacional de mediação de conflitos. Entre seus objetivos estava, principalmente, evitar novas guerras em território europeu. Entretanto, a Liga das Nações se mostrou ineficiente nas negociações de paz em que se envolveu. Rússia: a Revolução Russa e o pós-Guerra A saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial, determinante para a entrada dos Estados Unidos no conflito, ocorreu em função da revolução comunista que sacudiu o país em outubro de 1917. Vitoriosos na Revolução Russa, as classes proletária e camponesa, lideradas por Lênin e Trotsky, iniciaram um processo de transformação político-social-econômico radical no país. Devido a isso, a Rússia, aliando-se a outras repúblicas socialistas (Ucrânia, Letônia, Lituânia, etc.), se tornou na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Não sendo simplesmente uma nova potencia mundial que surgira, mas uma grande potência comunista. Com isso, em 1921, foi realizado o X Congresso do Partido Comunista da Rússia, neste congresso foi aprovada a Nova Política Econômica (NEP). As principais medidas da NEP foram: Formação das cooperativas nacionais (responsáveis pela produção); Autorização para o funcionamento de pequenas e médias empresas privadas; Permissão para que os pequenos camponeses comercializassem seus produtos livremente. Quanto aos setores vitais como indústrias, transportes, comunicações e o sistema financeiro, ficaram sob o controle do Estado. Essas medidas garantiram a estabilidade econômica do país, que experimentaria um processo de rápida modernização. Em 1924, com a morte de Lenin, Joseph Stálin venceu a disputa com Trotsky pelo governo soviético. Uma vez no poder, Stalin iniciou uma severa ditadura no país que duraria até a morte do ditador em 1953. A Primeira Guerra foi uma guerra sem fim Por tudo que vimos acima, especialmente com relação ao Tratado de Versalhes, o fim da Primeira Guerra Mundial não criou um ambiente de paz, ao contrário disso, ampliou as rivalidades existentes desde o período imperialista, especialmente nos alemães que passaram a desejar vingança. O discurso de Hitler era impregnado de acusações contra o Tratado de Versalhes e aos "traidores da nação", pois os social-democratas eram acusados de traidores por terem mediado a rendição do país. Com isso, as chamas da Guerra se manteriam acesas. Com o caminho estando aberto para que regimes autoritários assumissem o controle em várias nações européias, entre elas Alemanha (Hitler) e Itália (Mussolini). TRATADO DE VERSALHES: UM DOS FATORES DA 2a GUERRA MUNDIAL "A vitória total, ratificada por uma paz punitiva, imposta, arruinou as escassas possibilidades existentes de restaurar alguma coisa que guardasse mesmo fraca semelhança com uma Europa estável, liberal, burguesa, como reconheceu de imediato o economista John Maynard Keynes. Se a Alemanha não fosse reintegrada na economia européia, isto é, se não se reconhecesse e aceitasse o peso econômico do país dentro dessa economia, não poderia haver estabilidade. Mas essa era a última consideração na mente dos que tinham lutado para eliminar a Alemanha." "O acordo de paz imposto pelas grandes potências vitoriosas sobreviventes (EUA, Grã-Bretanha, França, Itália) e em geral, embora imprecisamente, conhecido como Tratado de Versalhes, era dominado por 5 considerações". Aqui Hobsbawm faz observações sobre o quanto foi arbitrária a divisão ou fatiamento político do mapa europeu pós-guerra. Só para dar um exemplo de gestação de problemas da época, o governo americano, na figura de Wilson, incentivou a criação de diversos Estados-nação étnico-linguísticos para substituir impérios fatiados - russo, habsburgo, otomano - que ainda nos anos 90 trariam guerras e massacres divisionistas : "O mapa da Europa tinha de ser redividido e retraçado, tanto para enfraquecer a Alemanha quanto para preencher os grandes espaços vazios deixados na Europa e no Oriente Médio pela derrota e colapsos simultâneos dos impérios russo, habsburgo e otomano. Os muitos pretendentes à sucessão, pelo menos na Europa, eram vários movimentos nacionalistas que os vitoriosos tendiam a estimular, contanto que fossem antibolcheviques como convinha (...) A tentativa foi um desastre, como ainda se pode ver na Europa da década de 1990. Os conflitos nacionais que despedaçam o continente na década de 1990 são as galinhas velhas do Tratado de Versalhes voltando mais uma vez para o choco*" p.39 (*) A guerra civil iugoslava, a agitação secessionista na Eslováquia, a secessão dos Estados Bálticos da antiga URSS, os conflitos entre húngaros e romenos pela Transilvânia, o separatismo da Moldova (Moldávia, ex-Bessarábia) e, na realidade, o nacionalismo transcaucasiano, são alguns dos problemas explosivos que não existiam ou não teriam como existir antes de 1914. LIGA DAS NAÇÕES: IDÉIA QUE NÃO VINGOU "A Liga das Nações foi de fato estabelecida como parte do acordo de paz e revelou-se um quase total fracasso, a não ser como uma instituição para coleta de estatísticas." "Nenhum acordo não endossado pelo que era agora uma grande potência mundial (EUA) podia se sustentar." E também: "Duas grandes potências européias, e na verdade mundiais, estavam temporariamente não apenas eliminadas do jogo internacional, mas tidas como não existindo como jogadores independentes - a Alemanha e a Rússia soviética." Esses foram fatores fundamentais para o curto período de paz - com graves crises econômicas nos países envolvidos - até a eclosão da 2a guerra mundial. Bibliografia: HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos - O breve século XX, 1914-1991. Companhia das Letras. Tradução de Marcos Santarrita, 2ª edição, 33ª reimpressão